No último dia 10, Brad O'Farrell publicou um excelente artigo para o Polygon discorrendo sobre como a galera da Game Freak utiliza eventos e situações do mundo real para desenvolver seus jogos.
Segue abaixo uma tradução de minha autoria do artigo, mas se você preferir pode acessar o texto original no seguinte link: http://www.polygon.com/2015/4/10/8339935/pokemon-new-york-tokyo-paris
Mesmo
que você leia a versão traduzida, sugiro que dê uma passada lá pelas
imagens legais comparando os mapas das regiões de Kanto, Unova e Kalos
com a Kanto, Paris e Nova York da vida real. É bem legal.
Boa leitura ;D
Este texto foi originalmente publicado em 19 de abril de 2015 no meu blog.
O criador da série, Satoshi Tajiri, disse em entrevista para a Time Magazine que Pokémon é baseado em seu hobby de infância de pegar insetos nos arredores rurais de Tóquio nos anos de 1960. Na mesma entrevista, Tajiri também disse que é importante para ele que os Pokémon não morram e sim desmaiem, já que ele acredita que a morte é tratada de forma muito displicente em video games. Ele também argumentou como essas escolhas criativas simples afetam as crianças e sua percepção do mundo. A indústria dos cursinhos intensivos (cram schools) começava quando Tajiri era garoto e ele queria fazer um jogo que ajudasse as crianças relaxarem por uns minutinhos por dia.
Mas há uma parte importante desta história que pode facilmente passar despercebida: muita coisa aconteceu no Japão entre os anos 1960 e 1990. Este período é conhecido como o "milagre econômico" - uma época quando a economia japonesa foi reforçada de forma anormal graças à ajuda dos Estados Unidos e de auxílio financeiro do governo japonês à indústria.
A cidade onde Tajiri cresceu era completamente envolvida pela expansão urbana de Tóquio à medida que a economia explodia. Segundo ele, muitos dos seus lugares favoritos para pegar insetos foram completamente asfaltados e substituídos por centros de fliperamas suburbanos. O governo japonês acelerou o crescimento econômico com práticas "demasiado grandes para falir" que podiam ser comparadas à bolha imobiliária dos Estados Unidos. Além disso, os americanos temiam que o Japão recorresse ao comunismo caso ficasse pobre demais, o que justificava a ajuda estrangeira com a teoria do dominó.
E tudo isso é, por mais estranho que possa parecer, refletido em Pokémon.
Um conto de duas Tóquios
Se comparar o mapa de Pokémon Red com um de Tóquio, verá que os dois são muito similares. De fato, cada jogo de Pokémon é baseado numa localidade do mundo real. Mas se olhar mais atentamente, verá que não são idênticas. O mapa de Pokémon Red não é baseado na Tóquio de hoje, mas na Tóquio pré-expansão dos anos 1960. As cidades que são conectadas por florestas e rios no mundo Pokémon são conectadas por concreto e trens-bala em nosso mundo. A fantasia deste mundo não é somente que Pokémon e humanos vivem lado a lado, mas que a era de ouro do Japão nunca acabou. Este mundo está em um estado de tranquilidade, enquanto sua contraparte da vida real está tumultuada.
Pokémon sempre teve uma forte e óbvia mensagem ambiental. Treinadores vivem em harmonia com Pokémon e com natureza porque poluição é ruim! Todavia, existem mais desvantagens na urbanização do que a destruição do mundo natural: o rápido crescimento econômico do Japão também resultou numa maior estratificação econômica. E enquanto o mundo Pokémon foi poupado do "milagre econômico" dos anos 1960, ele aparentemente ainda sofreu a decadência social daquele período, representada pelo aumento do crime organizado.
De algumas maneiras, o mundo Pokémon está falando duas coisas diferentes ao mesmo tempo ao nos mostrar uma utopia e então pessoas que ainda estão insatisfeitas com como as coisas estão.
Mesmo quando eu era uma jovem criança americana, conseguia ver a conexão do Team Rocket com a Yakuza e imagino que a maioria de nós também. Mas os vilões lembram muito mais os bōsōzoku, uma subcultura de motociclistas que ganhou destaque nos anos 1960. Bōsōzoku literalmente significa "decolar fora de controle".
Isso resultou na indústria dos cursinhos intensivos ao qual Satoshi Tajiri fez referência na entrevista mencionada acima. Suas notas no ensino médio e na faculdade têm correlação direta com sua qualidade de vida como adulto. Adolescentes com notas baixas geralmente já sabiam que tinham poucas chances de uma carreira bem-sucedida, mas encontravam solidariedade na rebelião comunal. (Tem um ótimo documentário sobre o movimento Bōsōzoku chamado Godspeed You! Black Emperor que segue a iniciação de um jovem na gangue de motociclistas local).
Enquanto os Team Rocket Grunts podem lembrar os jovens nervosos do bōsōzoku, o líder deles (e das outras gangues de Pokémon) possuem uma personalidade bem diferente. Giovanni, Maxie, Archie, Cyrus, N, Ghetsis e Lysandre todos seguem um arquétipo similar: são líderes visionários que manipulam os outros a ajudá-los a construírem seu mundo ideal. Cada um desses líderes também se rende abertamente depois de uma derrota moral.
Tal arquétipo parece ser baseado em Yukio Mishima, escritor vencedor do prêmio Nobel que falhou em derrubar o governo japonês em 1970. Mishima e seu exército particular invadiram uma base militar e tentaram inspirar um batalhão de soldados japoneses a se juntarem a ele num golpe contra o governo para restaurar a estrutura de poder pré-guerra. Quando os soldados riram de seu discurso, Mishima aceitou a derrota e suicidou-se imediatamente.
O mundo expandido
Enquanto muito disso pode parecer óbvio para qualquer um que cresceu no Japão nos anos 1960, é bastante inacessível à grande maioria do público de Pokémon. Não foi até 2011, com o lançamento de Pokémon Black & White, que um jogo da série se passou fora do Japão. O diretor do jogo Junichi Masuda explicitamente confirmou em seu blog que o cenário de Pokémon Black & White, Unova, é baseado em New York City.
Curiosamente, esta versão de New York City possui a mesma "ruralização" que os jogos anteriores aplicaram à Tóquio - mesmo que a cidade tenha sido praticamente sempre completamente urbana. Quando comprei este jogo, eu já morava em New York City por muitos anos e fiquei maravilhado com a profundidade e detalhe das referências. Tem hipsters em Nacrene City (baseado na infame Williamsburg, Brooklyn) que vivem em armazéns artisticamente pintados e falam coisas como "Eu não quero trabalhar, só tocar meu violão o dia todo."
Muitos dos líderes de ginásio refletem estereótipos "típicos de Nova York" como o designer de moda gay Burgh e a vistosa supermodelo Elesa. Este é também o primeiro jogo de Pokémon a ter alguma diversidade racial, com várias pessoas negras tendo papéis importantes no enredo. E um bocado de Pokémon nativos de Unova são baseados em uma variedade de bizarrices de NYC, como as vestes dos funcionários do MTA[2] (Watchog), o estilo de rua de NYC (Scrafty), os mini Yorkshires (Lillipup) e os montes de lixo (Trubbish). O mundo de Unova parece uma declaração de amor surreal a New York City.
Entretanto, a mais bizarra é provavelmente uma cratera gigante chamada Relic Castle que alinha perfeitamente com o Ground Zero[3] na verdadeira New York City. Só que no mundo Pokémon esta cratera foi causada por um meteoro e não por um ataque terrorista. Assim como o Team Rocket em Tóquio, o mundo Pokémon mostra as cicatrizes, mas ignora a ferida.
A cratera do Relic Castle seria o local de um embate épico entre duas gangues rivais num episódio do anime Pokémon que nunca foi exibido. Esta narrativa foi abandonada quando o desastre nuclear de Fukushima aumentou a sensibilidade sobre mostrar destruição em massa na tevê japonesa. O episódio foi posteriormente removido da cronologia da série e o Relic Castle não ganhou maior exploração desde então.
Talvez a percepção mais interessante que Pokémon Black & White oferece sobre
os EUA é que ele nos define por nossa heterogeneidade - especialmente quando
comparada ao Japão, uma sociedade reconhecidamente homogênea.
O nome Unova deriva da palavra "Unidade" e os NPCs[4] do jogo frequentemente descrevem Unova como uma sociedade diversa, mas coesa. O título "Black & White", preto e branco, é uma referência aos dois dragões yin e yang que têm o poder de dar ao seu Treinador a soberania sobre a terra. Os dragões são a encarnação de dois príncipes antigos que não conseguiam concordar sobre como governar - um irmão mais velho pragmático (representado por Reshiram) e um mais jovem idealista (representado por Zekrom).
Tem dois caminhos para reinar em Unova: "verdade" e "ideais". Não importa qual você escolha (e o jogo apresenta ambos como válidos) contanto que acredite sinceramente, você pode ser o rei. Dado o cenário do jogo, é difícil ver isto como qualquer outra coisa que não uma fantástica metáfora sobre o sistema político altamente polarizado dos Estados Unidos.
Direita VS Esquerda
A ideia de direita e esquerda política foi explorada ainda mais no jogo mais recente da série, Pokémon X & Y. A aventura se passa em Kalos, que Masuda confirmou ser baseada na França. Grande parte da trama do jogo gira em torno da (versão Pokémon da) Revolução Francesa, um movimento que começou na França, mas se espalhou pelo mundo e é a base principal para políticas progressistas.
O antagonista do game é Lysandre, o líder do Team Flare e último descendente de uma linhagem real que caiu do poder depois de uma revolução. O nome japonês de Lysandre é literalmente só Fleur-de-Lis, flor-de-lis, (o famoso símbolo da família real francesa), enquanto seu nome inglês quer dizer "libertador". O Team Flare consiste principalmente de pessoas abastadas e ligadas na moda que querem solidificar seu status como classe de elite.
O objetivo de Lysandre é reverter os efeitos da revolução e restaurar o poder da família real. Lysandre é a encarnação da postura indiferente da classe dominante da França pré-revolução; ele é um governante que se tornou um tirano quando seu privilégio fez com que fosse impossível para ele sentir empatia pelos seus subordinados.
Masuda falou em entrevista que os temas deste jogo são "beleza", "evolução" e "elos". E enquanto todas parecem ideias positivas no abstrato, elas são às vezes abordadas um pouco mais sinistramente dentro do jogo em si. A perseguição pela "beleza" na região beira o hedonismo. "Evolução" poderia ser outra referência à revolução de Kalos. E "elos" são às vezes representados como relações econômicas sádicas, como o personagem rico que atormenta um camponês até que ele repague uma dívida.
Enquanto seu plano é arruinado assim que revelado, diversos non sequitur[5] dos NPCs do jogo aludem ao problema de distribuir riqueza igualmente - muitos deles parecem estar pensando alto sobre se deviam ou não se juntar ao Team Flare. Uma criança em Dendemille Town diz "os caras maus falam que querem governar o mundo, mas eu acho que seria difícil tomar conta de todo mundo".
O centro moral de Pokémon X & Y jaz em seu benevolente chefão final, Diantha - que é a imagem cuspida e escarrada do ícone da cultura de cafe, Audrey Hepburn. Diantha é uma atriz linda e rica, mas (assim como a personagem de Hepburn em Cinderela em Paris) se indigna com elitismo. Logo no começo da história, o jogador testemunha Diantha recusar se juntar à gangue genocida fashionista de Lysandre - antes mesmo de o jogador ter plena consciência do que eles estão falando.
No fim do jogo, revela-se que ela é a campeã da liga Pokémon de Kalos. Ela lembra ao jogador que a beleza pode ser alcançada sem comprometer a empatia e que a riqueza pode ser mantida sem machucar os outros. Ela nos lembra de que a visão de Lysandre não é absoluta e que riqueza e beleza nem sempre levam à corrupção.
O meio é a mensagem
Satoshi Tajiri declarou que se não fizesse video games, faria anime, mas é de se pensar que alguém com aspirações de um cineasta focaria mais em tramas emocionantes e personagens dinâmicos do que nesta narrativa estranhamente passiva. Do contrário, Pokémon brinca com as forças do meio RPG: pede que você explore um mundo silenciosamente complexo com o qual você só pode interagir de maneira simples.
E quando você presta bastante atenção ao mundo de Pokémon, as coisas que mais saltam aos olhos são justamente as que estão faltando. Por que todo mundo anda de bicicleta em vez de carros? Por que ninguém parece ter um emprego? Por que raramente vemos qualquer violência real? Pode ser porque o mundo Pokémon é todo extrapolado da infância de Tajiri, que foi aparentemente bastante agradável. Talvez até mais agradável do que as infâncias estressantes vividas no Japão hoje.
De uma maneira sinistramente similar ao arquétipo vilão de Pokémon, Tajiri está recriado o mundo real à sua própria visão. Ele não está tentando pregar para o seu público nem ensinar uma lição. Ele está meramente nos convidando a observar o mundo idealizado que existe dentro de sua cabeça, esperando que aproveitemos nosso tempo lá.
Boa leitura ;D
Este texto foi originalmente publicado em 19 de abril de 2015 no meu blog.
Como o mundo de Pokémon foi
moldado por localidades do mundo real
Os
jogos de Pokémon oferecem narrativas bem diretas numa estrutura consistente:
você é um menino ou uma menina que viaja de cidade em cidade competindo para
conquistar insígnias e que, de alguma forma, sempre acaba derrubando uma
organização criminosa. Seu personagem quase nunca está em perigo, o mundo
raramente fica à beira de um colapso e a maior parte dos conflitos do jogo
assume a forma de disputas amigáveis. A
franquia Pokémon é famosa por muitas coisas, mas não por seus enredos.
(Aviso: este artigo contém spoilers de todos os jogos da série principal de Pokémon.)
"Você é um menino? Ou uma menina?"
A
estrutura narrativa da série possui forte contraste com as tipicamente
melodramáticas histórias de JRPG[1]. A
falta de drama em Pokémon lhe permite explorar um mundo relativamente estável
num estado de equilíbrio. Viajar por cidades só para coletar insígnias faz com
que cada lugar pareça um ponto turístico em vez de uma parada entre sequências
de ação. Organizações
criminosas como o Team Rocket dão aos os desenvolvedores dos jogos abertura
para que discorram filosofias sobre problemas sistemáticos do mundo sem
realmente mostrar nenhum desses problemas. Você não vai ver um mundo que foi ou
que está prestes a ser destruído por um meteoro espacial gigante; o mundo
Pokémon quase sempre está em paz. Isso por concepção.O criador da série, Satoshi Tajiri, disse em entrevista para a Time Magazine que Pokémon é baseado em seu hobby de infância de pegar insetos nos arredores rurais de Tóquio nos anos de 1960. Na mesma entrevista, Tajiri também disse que é importante para ele que os Pokémon não morram e sim desmaiem, já que ele acredita que a morte é tratada de forma muito displicente em video games. Ele também argumentou como essas escolhas criativas simples afetam as crianças e sua percepção do mundo. A indústria dos cursinhos intensivos (cram schools) começava quando Tajiri era garoto e ele queria fazer um jogo que ajudasse as crianças relaxarem por uns minutinhos por dia.
Mas há uma parte importante desta história que pode facilmente passar despercebida: muita coisa aconteceu no Japão entre os anos 1960 e 1990. Este período é conhecido como o "milagre econômico" - uma época quando a economia japonesa foi reforçada de forma anormal graças à ajuda dos Estados Unidos e de auxílio financeiro do governo japonês à indústria.
A cidade onde Tajiri cresceu era completamente envolvida pela expansão urbana de Tóquio à medida que a economia explodia. Segundo ele, muitos dos seus lugares favoritos para pegar insetos foram completamente asfaltados e substituídos por centros de fliperamas suburbanos. O governo japonês acelerou o crescimento econômico com práticas "demasiado grandes para falir" que podiam ser comparadas à bolha imobiliária dos Estados Unidos. Além disso, os americanos temiam que o Japão recorresse ao comunismo caso ficasse pobre demais, o que justificava a ajuda estrangeira com a teoria do dominó.
E tudo isso é, por mais estranho que possa parecer, refletido em Pokémon.
Um conto de duas Tóquios
Se comparar o mapa de Pokémon Red com um de Tóquio, verá que os dois são muito similares. De fato, cada jogo de Pokémon é baseado numa localidade do mundo real. Mas se olhar mais atentamente, verá que não são idênticas. O mapa de Pokémon Red não é baseado na Tóquio de hoje, mas na Tóquio pré-expansão dos anos 1960. As cidades que são conectadas por florestas e rios no mundo Pokémon são conectadas por concreto e trens-bala em nosso mundo. A fantasia deste mundo não é somente que Pokémon e humanos vivem lado a lado, mas que a era de ouro do Japão nunca acabou. Este mundo está em um estado de tranquilidade, enquanto sua contraparte da vida real está tumultuada.
Pokémon sempre teve uma forte e óbvia mensagem ambiental. Treinadores vivem em harmonia com Pokémon e com natureza porque poluição é ruim! Todavia, existem mais desvantagens na urbanização do que a destruição do mundo natural: o rápido crescimento econômico do Japão também resultou numa maior estratificação econômica. E enquanto o mundo Pokémon foi poupado do "milagre econômico" dos anos 1960, ele aparentemente ainda sofreu a decadência social daquele período, representada pelo aumento do crime organizado.
De algumas maneiras, o mundo Pokémon está falando duas coisas diferentes ao mesmo tempo ao nos mostrar uma utopia e então pessoas que ainda estão insatisfeitas com como as coisas estão.
Mesmo quando eu era uma jovem criança americana, conseguia ver a conexão do Team Rocket com a Yakuza e imagino que a maioria de nós também. Mas os vilões lembram muito mais os bōsōzoku, uma subcultura de motociclistas que ganhou destaque nos anos 1960. Bōsōzoku literalmente significa "decolar fora de controle".
"Ser mal me faz me sentir tão vivo!"
O
grupo consistia principalmente de adolescentes, insatisfeitos com
poucas chances de carreiras promissoras, que cometiam pequenos delitos
como
uma espécie de iniciação para se juntarem à Yakuza. Uma faceta das
estranhas
políticas econômicas do Japão era o conceito de "emprego vitalício" -
uma série de subsídios do governo que premia empresas por contratarem
jovens
que estão saindo da faculdade e empregá-los para sempre. Já é raro uma
empresa
japonesa demitir seus funcionários, mas mais raro ainda é vê-los
contratar pessoas que não sejam recém-graduados.Isso resultou na indústria dos cursinhos intensivos ao qual Satoshi Tajiri fez referência na entrevista mencionada acima. Suas notas no ensino médio e na faculdade têm correlação direta com sua qualidade de vida como adulto. Adolescentes com notas baixas geralmente já sabiam que tinham poucas chances de uma carreira bem-sucedida, mas encontravam solidariedade na rebelião comunal. (Tem um ótimo documentário sobre o movimento Bōsōzoku chamado Godspeed You! Black Emperor que segue a iniciação de um jovem na gangue de motociclistas local).
Enquanto os Team Rocket Grunts podem lembrar os jovens nervosos do bōsōzoku, o líder deles (e das outras gangues de Pokémon) possuem uma personalidade bem diferente. Giovanni, Maxie, Archie, Cyrus, N, Ghetsis e Lysandre todos seguem um arquétipo similar: são líderes visionários que manipulam os outros a ajudá-los a construírem seu mundo ideal. Cada um desses líderes também se rende abertamente depois de uma derrota moral.
Tal arquétipo parece ser baseado em Yukio Mishima, escritor vencedor do prêmio Nobel que falhou em derrubar o governo japonês em 1970. Mishima e seu exército particular invadiram uma base militar e tentaram inspirar um batalhão de soldados japoneses a se juntarem a ele num golpe contra o governo para restaurar a estrutura de poder pré-guerra. Quando os soldados riram de seu discurso, Mishima aceitou a derrota e suicidou-se imediatamente.
O mundo expandido
Enquanto muito disso pode parecer óbvio para qualquer um que cresceu no Japão nos anos 1960, é bastante inacessível à grande maioria do público de Pokémon. Não foi até 2011, com o lançamento de Pokémon Black & White, que um jogo da série se passou fora do Japão. O diretor do jogo Junichi Masuda explicitamente confirmou em seu blog que o cenário de Pokémon Black & White, Unova, é baseado em New York City.
Curiosamente, esta versão de New York City possui a mesma "ruralização" que os jogos anteriores aplicaram à Tóquio - mesmo que a cidade tenha sido praticamente sempre completamente urbana. Quando comprei este jogo, eu já morava em New York City por muitos anos e fiquei maravilhado com a profundidade e detalhe das referências. Tem hipsters em Nacrene City (baseado na infame Williamsburg, Brooklyn) que vivem em armazéns artisticamente pintados e falam coisas como "Eu não quero trabalhar, só tocar meu violão o dia todo."
Muitos dos líderes de ginásio refletem estereótipos "típicos de Nova York" como o designer de moda gay Burgh e a vistosa supermodelo Elesa. Este é também o primeiro jogo de Pokémon a ter alguma diversidade racial, com várias pessoas negras tendo papéis importantes no enredo. E um bocado de Pokémon nativos de Unova são baseados em uma variedade de bizarrices de NYC, como as vestes dos funcionários do MTA[2] (Watchog), o estilo de rua de NYC (Scrafty), os mini Yorkshires (Lillipup) e os montes de lixo (Trubbish). O mundo de Unova parece uma declaração de amor surreal a New York City.
Todavia existem certos aspectos dos EUA de Pokémon
que parecem encantadoramente fora do tom. Há muita conversa sobre escravidão (e
sobre se os Pokémon são ou não escravos) entre o Team Plasma e a líder de
ginásio negra Iris. Há um Pokémon fogo e psíquico chamado Victini que é
descrito como uma arma feita pelo homem que lhe ajuda a vencer mesmo que você
não o use - possivelmente uma adorável referência à opção nuclear americana.
"Que
saber? Mal posso esperar pra ter batalhas sérias com Treinadores
fortes! Quer dizer, qualé! Os Treinadores que chegam aqui são aqueles
que desejam a vitória com cada fibra do seu ser! E eles estão lutando ao
lado de Pokémon que passaram por incontáveis lutas difíceis! Se eu
enfrentar pessoas assim, não só eu ficarei mais forte, como meus Pokémon
também! E vamos nos conhecer ainda melhor! Ok! Prepare-se! Eu sou Iris,
a Campeã da Liga Pokémon, e vou te derrotar!"
Entretanto, a mais bizarra é provavelmente uma cratera gigante chamada Relic Castle que alinha perfeitamente com o Ground Zero[3] na verdadeira New York City. Só que no mundo Pokémon esta cratera foi causada por um meteoro e não por um ataque terrorista. Assim como o Team Rocket em Tóquio, o mundo Pokémon mostra as cicatrizes, mas ignora a ferida.
A cratera do Relic Castle seria o local de um embate épico entre duas gangues rivais num episódio do anime Pokémon que nunca foi exibido. Esta narrativa foi abandonada quando o desastre nuclear de Fukushima aumentou a sensibilidade sobre mostrar destruição em massa na tevê japonesa. O episódio foi posteriormente removido da cronologia da série e o Relic Castle não ganhou maior exploração desde então.
O nome Unova deriva da palavra "Unidade" e os NPCs[4] do jogo frequentemente descrevem Unova como uma sociedade diversa, mas coesa. O título "Black & White", preto e branco, é uma referência aos dois dragões yin e yang que têm o poder de dar ao seu Treinador a soberania sobre a terra. Os dragões são a encarnação de dois príncipes antigos que não conseguiam concordar sobre como governar - um irmão mais velho pragmático (representado por Reshiram) e um mais jovem idealista (representado por Zekrom).
Tem dois caminhos para reinar em Unova: "verdade" e "ideais". Não importa qual você escolha (e o jogo apresenta ambos como válidos) contanto que acredite sinceramente, você pode ser o rei. Dado o cenário do jogo, é difícil ver isto como qualquer outra coisa que não uma fantástica metáfora sobre o sistema político altamente polarizado dos Estados Unidos.
Direita VS Esquerda
A ideia de direita e esquerda política foi explorada ainda mais no jogo mais recente da série, Pokémon X & Y. A aventura se passa em Kalos, que Masuda confirmou ser baseada na França. Grande parte da trama do jogo gira em torno da (versão Pokémon da) Revolução Francesa, um movimento que começou na França, mas se espalhou pelo mundo e é a base principal para políticas progressistas.
O antagonista do game é Lysandre, o líder do Team Flare e último descendente de uma linhagem real que caiu do poder depois de uma revolução. O nome japonês de Lysandre é literalmente só Fleur-de-Lis, flor-de-lis, (o famoso símbolo da família real francesa), enquanto seu nome inglês quer dizer "libertador". O Team Flare consiste principalmente de pessoas abastadas e ligadas na moda que querem solidificar seu status como classe de elite.
O objetivo de Lysandre é reverter os efeitos da revolução e restaurar o poder da família real. Lysandre é a encarnação da postura indiferente da classe dominante da França pré-revolução; ele é um governante que se tornou um tirano quando seu privilégio fez com que fosse impossível para ele sentir empatia pelos seus subordinados.
Masuda falou em entrevista que os temas deste jogo são "beleza", "evolução" e "elos". E enquanto todas parecem ideias positivas no abstrato, elas são às vezes abordadas um pouco mais sinistramente dentro do jogo em si. A perseguição pela "beleza" na região beira o hedonismo. "Evolução" poderia ser outra referência à revolução de Kalos. E "elos" são às vezes representados como relações econômicas sádicas, como o personagem rico que atormenta um camponês até que ele repague uma dívida.
O Lumiose
Art Museum (baseado no Museu do Louvre em Paris) traz um bando de NPCs
humildemente se vangloriando por sua capacidade de apreciar belas artes.
Existem certos cafes em que você não
pode entrar até poder comprar roupas mais estilosas. Os membros do Team
Flare
falam bastante sobre dinheiro e moda e como é caro se juntar à sua
gangue. Em
certo ponto, a equipe toma o controle de uma fábrica de Pokébolas para
ter domínio sobre os meios de produção, tirando sua autonomia das
classes mais baixas.
Se não vai pedir nada, cai fora, tá?
Perto do fim de Pokémon X & Y, é revelado que o líder do Team Flare, Lysandre,
planeja assassinar todos os pobres usando uma arma gigante. Sim, esse é o
enredo. Ele quer fazer este mundo mais belo criando uma sociedade elitista que
não tem que dividir seus recursos com os menos afortunados.Enquanto seu plano é arruinado assim que revelado, diversos non sequitur[5] dos NPCs do jogo aludem ao problema de distribuir riqueza igualmente - muitos deles parecem estar pensando alto sobre se deviam ou não se juntar ao Team Flare. Uma criança em Dendemille Town diz "os caras maus falam que querem governar o mundo, mas eu acho que seria difícil tomar conta de todo mundo".
O centro moral de Pokémon X & Y jaz em seu benevolente chefão final, Diantha - que é a imagem cuspida e escarrada do ícone da cultura de cafe, Audrey Hepburn. Diantha é uma atriz linda e rica, mas (assim como a personagem de Hepburn em Cinderela em Paris) se indigna com elitismo. Logo no começo da história, o jogador testemunha Diantha recusar se juntar à gangue genocida fashionista de Lysandre - antes mesmo de o jogador ter plena consciência do que eles estão falando.
No fim do jogo, revela-se que ela é a campeã da liga Pokémon de Kalos. Ela lembra ao jogador que a beleza pode ser alcançada sem comprometer a empatia e que a riqueza pode ser mantida sem machucar os outros. Ela nos lembra de que a visão de Lysandre não é absoluta e que riqueza e beleza nem sempre levam à corrupção.
O meio é a mensagem
Satoshi Tajiri declarou que se não fizesse video games, faria anime, mas é de se pensar que alguém com aspirações de um cineasta focaria mais em tramas emocionantes e personagens dinâmicos do que nesta narrativa estranhamente passiva. Do contrário, Pokémon brinca com as forças do meio RPG: pede que você explore um mundo silenciosamente complexo com o qual você só pode interagir de maneira simples.
E quando você presta bastante atenção ao mundo de Pokémon, as coisas que mais saltam aos olhos são justamente as que estão faltando. Por que todo mundo anda de bicicleta em vez de carros? Por que ninguém parece ter um emprego? Por que raramente vemos qualquer violência real? Pode ser porque o mundo Pokémon é todo extrapolado da infância de Tajiri, que foi aparentemente bastante agradável. Talvez até mais agradável do que as infâncias estressantes vividas no Japão hoje.
De uma maneira sinistramente similar ao arquétipo vilão de Pokémon, Tajiri está recriado o mundo real à sua própria visão. Ele não está tentando pregar para o seu público nem ensinar uma lição. Ele está meramente nos convidando a observar o mundo idealizado que existe dentro de sua cabeça, esperando que aproveitemos nosso tempo lá.
[1]
JRPG: Japanese Role-Playing
Game, RPG japonês ou jogo de interpretação japonês.
[2] MTA: Autoridade de Transporte Metropolitano,
na sigla em inglês.
[3]
Ground Zero é a localização do antigo World Trade Center.
[4] NPC: personagens não-jogáveis, na sigla em
inglês
[5]
Termo em latim que se refere à falácia lógica na qual a conclusão não decorre
das premissas.
WOW
ResponderExcluirTexto muito bom, analisando coisas que podem passar despercebidas pelos mais desatentos
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